Quem viver, viverá

Eu parei em algum ponto do caminho e deixei meus grampos de cabelo. Algumas anotações, todos os esmaltes e maquiagens, várias roupas e sapatos, alguns sonhos e também umas vontades que podiam esperar.. acho que deixei um pé de manga rosa também. Larguei tudo debaixo de um abacateiro, pra ver se me pesava menos a mochila. Fui colocando areia no lugar. Areia, areia, areia, até não caber mais - e aí eu tirava mais coisas e botava mais areia. 

O destino era um só: água. Pensei: se eu caminhar o suficiente e carregar areia o suficiente, eventualmente, vou encontrar água e conseguir construir meu castelo. 

O problema de carregar areia por muito tempo no sol quente é que ela pesa, e você não pode se dar luxo de parar um pouco pra descansar, porque quanto mais velho você fica, menos força você tem pra carregar a vida nas costas. Então eu segui caminhando por dias, meses, anos, com a minha areia, na certeza da água. Algumas pedras no caminho eu aproveitei, pensando que poderiam servir na minha construção. Outras me lembraram da minha pequena grande falha de coordenação motora. Cada queda me fazia perder um pouco do meu farelo encantado, então eu levantava toda brava e lá ia compensar a queda e as perdas juntando mais areia. Eu não olhei pra trás um segundo, sabe? Eu achei que, quando minha morada estivesse pronta, eu teria tempo de voltar pra pegar o que deixei lá atrás. Só que choveu. A água veio do lugar errado, na hora errada. Minha mochila arrebentou com o peso da areia molhada e eu senti a carga do mundo inteiro nas minhas costas, ironicamente, depois que meus ombros já estavam livres e a mochila espatifada no chão. 

Todos os km enfrentados me pareceram dignos de riso, pra não dizer pena. As certezas que iriam construir o castelo, de repente, eram feitas de areia também, e areia molha. Areia voa. Areia pesa. Areia escapa pelos dedos facilmente, antes que você possa tentar fechar a mão. Eu fui tola, como toda criança é, e acreditei muito que bastava estudar pra ir bem na prova, bastava trabalhar pra ir bem na vida, bastava investir 200% de si mesmo no seu alvo pra conseguir alcançá-lo.  A gente acha que a recompensa vem a galope quando o esforço é feito à pé, né? Mas a vida é de humanas, não entende de proporcionalidade. A vida entende mesmo é de presença. 

No agora que eu estava construindo, não existia o agora, só o depois. Enfim, a hipocrisia né? Na minha cabeça ingênua, não existia tempo para os badulaques que deixei pra trás, porque haveria futuramente se eu fosse correndo e voltasse correndo. Eu estava fazendo o meu tempo e dizendo ao tempo o tempo que ele precisava ter pra ter mais tempo.

Agora - nesse exato instante - eu olho pro agora e o vejo como é. Ele existe, afinal, e eu estava cega com os olhos no castelo. Volto caminhando sem pressa, sabendo que, talvez, meus esmaltes tenham sido roubados. Talvez minhas anotações tenha molhado com a chuva que levou a areia embora. Pode ser que os sapatos já não caibam mais nesses pés calejados pela estrada. Não sei. Já não quero saber, também. Tudo que ficou pra trás e agora está à frente, enquanto ando de volta para onde eu estava, não existe enquanto eu não chegar lá. A menina que vai recuperar os sonhos e fazer as vontades pararem de esperar, e talvez até recuperar a tinta de cabelo, não existe - ainda. E será que ela vai existir? Caminho pensativa, imaginando se vou chegar, e se chegar, se vai estar tudo lá me esperando, e se estiver, se ainda vou querer ter cabelo amarelo. Sigo caminhando. Paro de olhar pra frente e ergo os olhos pro céu. Vejo as nuvens dissipando. Olho para as árvores e vejo algumas folhas caindo. Eu caio também, ralo o joelho e o sangue escorre na minha calça já rasgada. Penso: dói. Paro e sinto a dor, e não penso que depois vai passar, porque não quero saber do depois. Não penso em como vai ser, porque ele também existe, ele só é. Se eu vou chegar no lugar que, nesse instante, me impulsiona a caminhar? Talvez. Sei que alguém vai chegar lá, mas, sendo sincera, não gosto de falar pelos outros. Ela, quando chegar, que decida o que fazer com seu agora...Quem viver, (vi)verá.

Comentários